Arronches Junqueiro (1868-1940)
A propósito do 140.º aniversário de nascimento.

A 13 de Janeiro último cumpriram-se 140 anos sobre a data natal, em Setúbal, do eminente homem de saber, exímio prosador, apreciado poeta, meritório artista plástico, atento e participativo cidadão António Casimiro Arronches Junqueiro. Na cidade que foi seu berço e a cujo estudo e divulgação dedicou o amor e carinho que em sua alma grande cabiam, nem uma única voz se fez ouvir, por débil que fosse, em celebração de tão significativa efeméride. Sabemos bem que os hodiernos ventos não sopram favoráveis a celebrações de carácter cívico e de feição comemoracionista… A voragem do tempo que corre impõe-nos (exige-nos, mesmo) um ritmo de viver que não se coaduna com a sã prática reflexiva a qual implica o olhar atento e a actuação constante sobre o passado. Ora é nesse passado que buscaremos as raízes do que somos e é nele, afinal, que encontraremos as forças necessárias para traçar o rumo certo no desvendar dos caminhos do porvir, do futuro colectivo.

ARROCHES JUNQUEIRO TOCANDO VIOLA
Neste contexto impõe-se a questão: – Que pode interessar aos modernos setubalenses a figura de Arronches Junqueiro, sobre cuja data de nascimento se cumpriram 140 anos? – Pese embora o carácter romântico da sua poesia, hoje de difícil leitura; possam os seus conceitos históricos, arqueológicos, científicos… estar desactualizados, o que fica da vida de Junqueiro e o que dele deve ser rememorado é, sobretudo, o exemplo cívico de dedicação a Setúbal e aos setubalenses, cuja história, arqueologia, tradições, flora e fauna estudou apaixonadamente.
A infância de Junqueiro foi dividida entre uma casa da vetusta Rua de S. Sebastião (hoje designada, precisamente, Rua Arronches Junqueiro) e a Quinta da Laje, na Estrada das Machadas, ao fundo da Azinhaga de Santo António, a caminho do antigo Convento de São Paulo. Na primeira estabelecia-se a família no Inverno, enquanto que na segunda eram passados os meses de Estio.
Concluído o curso dos liceus, Arronches Junqueiro abandonou a aprendizagem formal. Beneficiando de um meio familiar intelectualmente estimulante, economicamente desafogado e, para mais, sendo filho único, o jovem estudaria guiado pelos progenitores e, depois, por conta própria, tornando-se num dos mais brilhantes espíritos setubalenses da sua geração. Uma incansável curiosidade, indizíveis canseiras e aturada investigação fizeram dele um exímio e reconhecido naturalista; um etnógrafo e um arqueógrafo aceite e aplaudido pelos seus pares; um reconhecido poeta, prosador e dramaturgo; um seguro memorialista; um astrónomo amador inteligente e um artista plástico de mérito.
A 17 de Outubro de 1888 Arronches Junqueiro casou com Maria Georgina de Carvalho, que não era estranha aos segredos das letras e das artes. Era filha de José Luciano de Carvalho (1838-1897), o primeiro bibliotecário setubalense, e irmã de Luciano Evaristo de Carvalho (1871-1916), o segundo bibliotecário, ao qual sucederia o próprio Junqueiro. Após o enlace, o jovem casal foi residir na Quinta da Laje. Foi nesse retiro que aquele homem, que em jovem não havia querido seguir curso superior, se lançou ao estudo (amador, autodidacta, sério e apaixonado) dos valores naturais e culturais da região em que nascera. A todos os interesses cultivou, com dedicação extrema e com saber invulgar, tornando-se numa espécie de derradeiro “humanista” setubalense. Nessa tão amada tebaida – bastas vezes o nosso autor se referiu a si próprio como sendo um eremita – Junqueiro constituiu, com tenacidade beneditina, um insectário e um herbário regionais; uma colecção geológica que ofereceria, em 1908, à Escola Liberal de Setúbal; uma elogiada colecção de história natural que, em 1921, entregaria à cidade natal, depositando-a no Liceu Bocage, nesse ano elevado à categoria de Liceu Central.
A poesia junqueiriana consta de oito volumes (quatro publicados e outros tantos inéditos), além de inúmeras composições avulsas insertas nas páginas dos periódicos locais, impressas a propósito de qualquer ocasião especial ou, pura e simplesmente, inéditas.
Enquanto autor teatral Junqueiro será memorável pelo drama A Barcarola, com cuja representação se inaugurou, 1 de Agosto de 1897, o teatro D. Amélia em Setúbal – posteriormente designado Luísa Todi. Inéditas ficaram três outras peças e uma colectânea de Teatro Infantil.
Como memorialista deixou-nos Junqueiro interessantíssimas lembranças em Setúbal no meado do século XIX, texto que se mantém inédito.
Na faceta de cientista social Junqueiro foi arqueógrafo e etnólogo sensível, tendo colaborado nas revistas O Arqueólogo Português, dirigida por Leite de Vasconcelos (1858-1941), e A Tradição, revista mensal de etnografia portuguesa, publicada em Serpa, entre 1899 e 1904, sob a direcção de Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes.
Como geólogo constituiu, na sua amada Quinta da Laje, “uma interessante colecção geológica” que, em 1908, ofereceria à Escola Liberal de Setúbal.
O eminente setubalense revelou-se também competente nos domínios da botânica, da zoologia e da entomologia. No herbário por ele organizado, figuravam “oito centenas de espécimes devidamente guardadas e classificadas”, segundo Cabral Adão (1910-1992) pôde ainda testemunhar em 1954, ao visitar a Quinta da Laje.
Como zoólogo e entomólogo distinto Junqueiro criou o primeiro Museu de História Natural que a cidade do Sado conheceu, cujas colecções ofereceria, em 1921, ao Liceu da terra natal.
Junqueiro revelou-se, ainda, um exímio bacteriologista, ao colaborar com o clínico Fernando Garcia (1872-1931), nomeadamente em pesquisas que permitiram identificar o agente bacteriológico das febres de Setúbal e que foi tema para dois artigos publicados por aquele médico na revista Medicina Moderna, nos anos de 1916 e 1919, respectivamente.
Junqueiro foi, ainda, astrónomo amador e artista plástico de merecimento, sendo de sua autoria um presépio que hoje, por oferta de Maria Igreja Carvalho Costa e Mário Alberto Costa, está patente no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal.
Seguindo as pisadas do pai – Henrique Carlos Junqueiro (1830-1901) – António foi republicano. Foi-o num tempo em que a República se afigurava a tantos desiludidos como a universal panaceia para todos os males e afrontas de que Portugal ia padecendo. A 6 de Outubro de 1910 integrou a primeira Comissão Administrativa republicana do município setubalense. Tomou o “pelouro” da “instrução e jardins”. Ocupou, depois, por diversas ocasiões, o lugar de Administrador do Concelho.
Foi por certo a actividade política que o levou, a 22 de Março de 1914, a assumir a direcção do periódico A Folha de Setúbal. Com a entrada de Junqueiro (n.º 92) verificaram-se algumas mudanças. Desde logo houve uma alteração no subtítulo do periódico: onde até então se lia “Semanário republicano” passou a ler-se uma bem mais precisa indicação – “semanário republicano evolucionista”. Republicano por utopia e desiludido da República logo após a instauração do regime, Junqueiro aproximar-se-ia do ideário defendido pela ditadura e, depois, pelo Estado Novo espelhando nesta evolução, aliás, a evolução de outros partidários do próprio regime, ele mesmo internamente diverso e contraditório, que não tardaria em revelar as fracturas que comportava no seu seio.
Falta, por fim, uma referência à actividade de Junqueiro como bibliotecário municipal. Foi designado para o lugar, interinamente, ainda em 1913, uma vez liberto das funções a que fora chamado para a Administração do Concelho. Em Novembro de 1916, por fim, seria definitivamente nomeado bibliotecário municipal. Abandonou o lugar, aposentado por limite de idade, aos 70 anos, no dia 13 de Janeiro de 1938.
Servem estas breves linhas, subtraídas a trabalho mais vasto que temos vindo a elaborar, chamando a atenção para esta figura setubalense, hoje praticamente ignorada, cujo nome figura na placa toponímica de uma artéria setubalense que todos conhecem, afinal, por Rua de São Sebastião! Junqueiro é apenas um exemplo de tantos outros valores da cultura setubalense que hoje jazem no mais profundo e incompreensível olvido, sem que ninguém lhes promova o estudo e a divulgação sistemática.
CARLOS MOURO


Noite de Inverno

O vento rosna nas frinchas
das portas. Um pingo cai
compassado
a chorar
do beiral do meu telhado

E pela vastidão da noite escura
misteriosa
angustiosa,
ecoa a sinfonia da procela.
Enfurecido,
com braço vigoroso de bandido
o vento vem forçar-me os vidros da janela.


A luz
à minha cabeceira, oscila e treme.
Sinto um calafrio a repelar-me,
e olho a vida em doidas espirais…
parece uma bandeira a acenar-me,
a fazer-me sinais.

Lá fora há uivos, gritos, estertores
de árvores a gemer,
numa miséria trágica de dores…
Troncos estalando,
folhas doidejando,
na luta colossal de querer viver.


O vento, como um deus louco e potente
em fúrias singulares,
rugindo como fera omnipotente
sacode e torce, em crises de demente
os troncos seculares


Alta noite.
O bandido cansou-se. Reina o silêncio
Apenas um pingo cai
Compassado,
Espaçado,
A chorar
dos beirais do meu telhado.


Arronches Junqueiro
Dezembro de 1919.


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