A propósito do 140.º aniversário de nascimento.

ARROCHES JUNQUEIRO TOCANDO VIOLA
Neste contexto impõe-se a questão: – Que pode interessar aos modernos setubalenses a figura de Arronches Junqueiro, sobre cuja data de nascimento se cumpriram 140 anos? – Pese embora o carácter romântico da sua poesia, hoje de difícil leitura; possam os seus conceitos históricos, arqueológicos, científicos… estar desactualizados, o que fica da vida de Junqueiro e o que dele deve ser rememorado é, sobretudo, o exemplo cívico de dedicação a Setúbal e aos setubalenses, cuja história, arqueologia, tradições, flora e fauna estudou apaixonadamente.
A infância de Junqueiro foi dividida entre uma casa da vetusta Rua de S. Sebastião (hoje designada, precisamente, Rua Arronches Junqueiro) e a Quinta da Laje, na Estrada das Machadas, ao fundo da Azinhaga de Santo António, a caminho do antigo Convento de São Paulo. Na primeira estabelecia-se a família no Inverno, enquanto que na segunda eram passados os meses de Estio.
Concluído o curso dos liceus, Arronches Junqueiro abandonou a aprendizagem formal. Beneficiando de um meio familiar intelectualmente estimulante, economicamente desafogado e, para mais, sendo filho único, o jovem estudaria guiado pelos progenitores e, depois, por conta própria, tornando-se num dos mais brilhantes espíritos setubalenses da sua geração. Uma incansável curiosidade, indizíveis canseiras e aturada investigação fizeram dele um exímio e reconhecido naturalista; um etnógrafo e um arqueógrafo aceite e aplaudido pelos seus pares; um reconhecido poeta, prosador e dramaturgo; um seguro memorialista; um astrónomo amador inteligente e um artista plástico de mérito.
A 17 de Outubro de 1888 Arronches Junqueiro casou com Maria Georgina de Carvalho, que não era estranha aos segredos das letras e das artes. Era filha de José Luciano de Carvalho (1838-1897), o primeiro bibliotecário setubalense, e irmã de Luciano Evaristo de Carvalho (1871-1916), o segundo bibliotecário, ao qual sucederia o próprio Junqueiro. Após o enlace, o jovem casal foi residir na Quinta da Laje. Foi nesse retiro que aquele homem, que em jovem não havia querido seguir curso superior, se lançou ao estudo (amador, autodidacta, sério e apaixonado) dos valores naturais e culturais da região em que nascera. A todos os interesses cultivou, com dedicação extrema e com saber invulgar, tornando-se numa espécie de derradeiro “humanista” setubalense. Nessa tão amada tebaida – bastas vezes o nosso autor se referiu a si próprio como sendo um eremita – Junqueiro constituiu, com tenacidade beneditina, um insectário e um herbário regionais; uma colecção geológica que ofereceria, em 1908, à Escola Liberal de Setúbal; uma elogiada colecção de história natural que, em 1921, entregaria à cidade natal, depositando-a no Liceu Bocage, nesse ano elevado à categoria de Liceu Central.
A poesia junqueiriana consta de oito volumes (quatro publicados e outros tantos inéditos), além de inúmeras composições avulsas insertas nas páginas dos periódicos locais, impressas a propósito de qualquer ocasião especial ou, pura e simplesmente, inéditas.
Enquanto autor teatral Junqueiro será memorável pelo drama A Barcarola, com cuja representação se inaugurou, 1 de Agosto de 1897, o teatro D. Amélia em Setúbal – posteriormente designado Luísa Todi. Inéditas ficaram três outras peças e uma colectânea de Teatro Infantil.
Como memorialista deixou-nos Junqueiro interessantíssimas lembranças em Setúbal no meado do século XIX, texto que se mantém inédito.
Na faceta de cientista social Junqueiro foi arqueógrafo e etnólogo sensível, tendo colaborado nas revistas O Arqueólogo Português, dirigida por Leite de Vasconcelos (1858-1941), e A Tradição, revista mensal de etnografia portuguesa, publicada em Serpa, entre 1899 e 1904, sob a direcção de Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes.
Como geólogo constituiu, na sua amada Quinta da Laje, “uma interessante colecção geológica” que, em 1908, ofereceria à Escola Liberal de Setúbal.
O eminente setubalense revelou-se também competente nos domínios da botânica, da zoologia e da entomologia. No herbário por ele organizado, figuravam “oito centenas de espécimes devidamente guardadas e classificadas”, segundo Cabral Adão (1910-1992) pôde ainda testemunhar em 1954, ao visitar a Quinta da Laje.
Como zoólogo e entomólogo distinto Junqueiro criou o primeiro Museu de História Natural que a cidade do Sado conheceu, cujas colecções ofereceria, em 1921, ao Liceu da terra natal.
Junqueiro revelou-se, ainda, um exímio bacteriologista, ao colaborar com o clínico Fernando Garcia (1872-1931), nomeadamente em pesquisas que permitiram identificar o agente bacteriológico das febres de Setúbal e que foi tema para dois artigos publicados por aquele médico na revista Medicina Moderna, nos anos de 1916 e 1919, respectivamente.
Junqueiro foi, ainda, astrónomo amador e artista plástico de merecimento, sendo de sua autoria um presépio que hoje, por oferta de Maria Igreja Carvalho Costa e Mário Alberto Costa, está patente no Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal.
Seguindo as pisadas do pai – Henrique Carlos Junqueiro (1830-1901) – António foi republicano. Foi-o num tempo em que a República se afigurava a tantos desiludidos como a universal panaceia para todos os males e afrontas de que Portugal ia padecendo. A 6 de Outubro de 1910 integrou a primeira Comissão Administrativa republicana do município setubalense. Tomou o “pelouro” da “instrução e jardins”. Ocupou, depois, por diversas ocasiões, o lugar de Administrador do Concelho.
Foi por certo a actividade política que o levou, a 22 de Março de 1914, a assumir a direcção do periódico A Folha de Setúbal. Com a entrada de Junqueiro (n.º 92) verificaram-se algumas mudanças. Desde logo houve uma alteração no subtítulo do periódico: onde até então se lia “Semanário republicano” passou a ler-se uma bem mais precisa indicação – “semanário republicano evolucionista”. Republicano por utopia e desiludido da República logo após a instauração do regime, Junqueiro aproximar-se-ia do ideário defendido pela ditadura e, depois, pelo Estado Novo espelhando nesta evolução, aliás, a evolução de outros partidários do próprio regime, ele mesmo internamente diverso e contraditório, que não tardaria em revelar as fracturas que comportava no seu seio.
Falta, por fim, uma referência à actividade de Junqueiro como bibliotecário municipal. Foi designado para o lugar, interinamente, ainda em 1913, uma vez liberto das funções a que fora chamado para a Administração do Concelho. Em Novembro de 1916, por fim, seria definitivamente nomeado bibliotecário municipal. Abandonou o lugar, aposentado por limite de idade, aos 70 anos, no dia 13 de Janeiro de 1938.
Servem estas breves linhas, subtraídas a trabalho mais vasto que temos vindo a elaborar, chamando a atenção para esta figura setubalense, hoje praticamente ignorada, cujo nome figura na placa toponímica de uma artéria setubalense que todos conhecem, afinal, por Rua de São Sebastião! Junqueiro é apenas um exemplo de tantos outros valores da cultura setubalense que hoje jazem no mais profundo e incompreensível olvido, sem que ninguém lhes promova o estudo e a divulgação sistemática.
CARLOS MOURO
Noite de Inverno
O vento rosna nas frinchas
das portas. Um pingo cai
compassado
a chorar
do beiral do meu telhado
E pela vastidão da noite escura
misteriosa
angustiosa,
ecoa a sinfonia da procela.
Enfurecido,
com braço vigoroso de bandido
o vento vem forçar-me os vidros da janela.
A luz
à minha cabeceira, oscila e treme.
Sinto um calafrio a repelar-me,
e olho a vida em doidas espirais…
parece uma bandeira a acenar-me,
a fazer-me sinais.
Lá fora há uivos, gritos, estertores
de árvores a gemer,
numa miséria trágica de dores…
Troncos estalando,
folhas doidejando,
na luta colossal de querer viver.
O vento, como um deus louco e potente
em fúrias singulares,
rugindo como fera omnipotente
sacode e torce, em crises de demente
os troncos seculares
Alta noite.
O bandido cansou-se. Reina o silêncio
Apenas um pingo cai
Compassado,
Espaçado,
A chorar
dos beirais do meu telhado.
Arronches Junqueiro
Dezembro de 1919.
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